A despeito do julgamento do Supremo Tribunal Federal (”STF”), que declarou a constitucionalidade do Código Florestal, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) tem se utilizado de uma tese de que o Código Florestal não pode retroagir para emplacar a sua inaplicabilidade.
Em síntese, a tese consiste na:
“inaplicabilidade de norma ambiental superveniente de cunho material aos processos em curso, seja para proteger o ato jurídico perfeito, os direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada, seja para evitar a redução do patamar de proteção de ecossistemas frágeis sem as necessárias compensações ambientais”.
Em uma pesquisa específica de análise quantitativa, foram registrados no STJ 23 decisões que se utilizam dessa tese, entre 2014 e 2020[1]. Esse entendimento parece razoável, na medida em que segue a linha de outros posicionamentos fixados pelo STJ no sentido de que não há direito adquirido em relação à poluição e que deve ser aplicada a lei ambiental mais benéfica ao meio ambiente, no caso, a lei em vigor à época dos fatos.
Acontece que, em muitos casos, a observância desse entendimento não tolera a aplicação de diversos dispositivos do Código Florestal. É o caso do artigo 15, que prevê o cômputo da Área de Preservação Permanente (“APP”) em Reserva Legal, desde que observados os requisitos legais[2].
A natureza desse dispositivo (art. 15) está justamente relacionada ao déficit de reserva legal antes de 22 de julho 2008. A esse respeito, o artigo 17 do Código Florestal estabelece que não podem haver atividades em áreas de reserva legal desmatada irregularmente após 22 de julho de 2008. Ou seja, o artigo 15 foi inserido na Lei exatamente para solucionar os déficits de Reserva Legal existentes antes de 22 de julho de 2008, de modo que após essa data, em caso de supressões irregulares, a Reserva Legal deve ser recomposta.
Além disso, a Medida Provisória nº 2.166-67/2001 havia incluído no Código Florestal de 1965 (Lei Federal nº 4.771/1965) um dispositivo semelhante (art. 16, § 6º), de modo que já se permitia o cômputo da APP na reserva legal desde 2001.
A despeito dessas constatações, em relação à inaplicabilidade do dispositivo do Novo Código Florestal que prevê o cômputo de APP em Reserva Legal, foram analisados pelo STJ, até 2020[3], 17 recursos, sendo reconhecida a inaplicabilidade do dispositivo em todos os casos.
Verificando o histórico desses entendimentos, compreendemos que o marco jurisprudencial nesse sentido, do STJ, é o Recurso Especial (“REsp”) nº 1.240.122/PR, cuja relatoria foi do Ministro Herman Benjamin.
Nessa linha, no acórdão do REsp mencionado, o Ministro fixou que:
“A regra geral, pois, é a irretroatividade da lei nova (lex non habet oculos retro); a retroatividade plasma exceção, blindados, no Direito brasileiro, o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Mesmo fora desses três domínios de intocabilidade, a retroatividade será sempre exceção, daí requerendo-se manifestação expressa do legislador, que deve, ademais, fundar-se em extraordinárias razões de ordem pública, nunca para atender interesses patrimoniais egoísticos dos particulares em prejuízo da coletividade e das gerações futuras. (…)
Em suma, a lei pode, sim, retroagir, desde que não dilapide o patrimônio material, moral ou ecológico, constitucional ou legalmente garantido, dos sujeitos, individuais ou coletivos: essa a fronteira da retroatividade.”
Em análises de dispositivos do Código Florestal, como o artigo 15, parece que o legislador teve a intenção de estabelecer normas retroativas. Ressalta-se a esse respeito que a norma garante a permanência do status de APP da área computada, apenas deixando de exigir novas recomposições a título de reserva legal. Assim, no que diz respeito às APPs, não há qualquer malefício aos interesses da coletividade e das gerações futuras.
É evidente que o Novo Código Florestal é uma norma menos protetiva. Contudo, o que se defende é que a nova legislação permite uma efetiva regularização de áreas suprimidas irregularmente, conciliado ao desenvolvimento sustentável, ou seja, uma norma equilibrada, que visa a proteção do meio ambiente zelando também pelo desenvolvimento econômico da propriedade rural privada.
Dessa forma, analisando o Código Florestal concomitantemente com decisões do STJ há uma latente insegurança jurídica. A respeito do artigo 15, se por um lado, a legislação diz ser cabível o cômputo de APP em Reserva Legal, observados requisitos específicos, por outro, o STJ não reconhece a aplicabilidade do dispositivo legal.
Há ainda, nesse caminho, decisões de tribunais que reconhecem a aplicabilidade do dispositivo, órgãos ambientais que implementam as políticas ambientais na forma prevista em lei e o Ministério Público que, muitas vezes, também não reconhece a aplicabilidade dos dispositivos que só seriam aplicáveis se a norma retroagir.
A esse respeito, verificamos que a judicialização do artigo 15 do Código Florestal não é uma realidade em todos os Estados. Em verdade, verificamos que, no Brasil, apenas os Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul possuem jurisprudência a esse respeito, sendo que a maioria da jurisprudência se concentra em São Paulo.
Além disso, diferentemente do que vem sendo adotado pelo STJ, os Estados tem aplicado integralmente o Código Florestal, havendo poucos entendimentos dissonantes. Provavelmente em razão do que vem sendo consolidado no STJ, no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, um Desembargador da 2ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente tem proferido entendimentos no sentido de prevalecer o princípio do “tempus regit actum” no Direito Ambiental, justificando no posicionamento do STJ, sendo assim, contrário à incidência do artigo 15 do Código Florestal.
Portanto, essa disputa normativa-jurisprudencial, que acarreta na inaplicabilidade do Código Florestal, somado aos atrasos na validação do Cadastro Ambiental Rural e na implementação do Programa de Regularização Ambiental e de seus respectivos Planos de Recuperação de Áreas Degradadas, prejudica a cessão dos danos ambientais relacionados. Além disso, os proprietários e posseiros de imóveis rurais com déficits aguardam um ambiente com maior segurança jurídica para seguir com a respectiva regularização de suas áreas.
[1] 2020 – 1; 2019 – 4; 2018 – 7; 2017 – 7; 2016 – 2; 2015 – 1; e 2014 – 1.
[2] I – o benefício previsto neste artigo não implique a conversão de novas áreas para o uso alternativo do solo; II – a área a ser computada esteja conservada ou em processo de recuperação, conforme comprovação do proprietário ao órgão estadual integrante do Sisnama; e III – o proprietário ou possuidor tenha requerido inclusão do imóvel no Cadastro Ambiental Rural – CAR, nos termos desta Lei.
[3] 2020 – 3; 2019 – 8; e 2018 – 6.
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